19.10.06

As lorelei de João Cutileiro (livro esgotadíssimo, arre que não há nenhuma editora que re-edite isto)

Lorelei (I)
Lorelei vem de uma água escura! Há uma luz de navios caídos e está presa aos cabelos dela, noite e dia!
Noite e dia tem a pele molhada e o corpo em sobressalto. Não consegue parar a alma, sempre em mudança. Põe-se de pé no alto de uma pedra, a chorar. Esquece, grita, chama, adormece.
Lorelei levanta-se. Levanta-se outra vez.
Nos olhos tem o azul sujo de um mar cansado de céu. Queixa-se, espreguiça-se, lava-se em lágrimas e floresce.
Acorda.
Quando Lorelei acorda, o mundo tem ordens para não olhar. É uma sereia. Não se vê. Não se percebe. É magia? É uma magia que ainda não cresceu. É de pele? É de pedra? É de água. Não se percebe. Lorelei não se percebe.
É uma sereia. Uma sereia é um problema que não se resolve facilmente, que gosta de grutas. Não gosta de vir à tona de água. Tem medo das alturas. Não gosta da sensação do ar nos olhos. Não suporta a claridade. Sem a ajuda da água, todas as cores acabam por esbranquiçar.
Sempre que está em terra, a tratar das coisas que as sereias tratam, tentando aliciar o primeiro marinheiro do dia, apetece-lhe desistir e mergulhar, abrir os olhos e olhar.
Não gosta nada quando os marinheiros não vêm ou não correspondem ou só aparecem muito tarde. Não gosta nada de não se despachar. Mas gosta de estar deitada de costas no chão do rio, num dia de calor, a adivinhar quantos azuis tem o céu.
A água funda é mais fresca no verão e ela gosta de estar horas sem se mexer, a sentir o rio inteiro a passar por cima dela. Lá em cima, no barulho branco do outro mundo, quase se vêem os pássaros inteligentes a nadar na ventania.Não gosta de estar cá em cima.
Nada. A escuridão do rio é a única coisa capaz de a sossegar.

Lorelei (II)
Lorelei é a menina curva da minha mão, a linha recta do meu olhar. Deita o cabelo à pedra fria e escuta. As árvores cantam o que o rio lhes diz e o rio corre, porque o mar chama. E o mar é como a lua mandar. Quem manda na lua, ninguém sabe. Sabes?
É por ela que eu hei-de apaixonar-me. Esquece. Escuta. Há qualquer coisa no coração que te quer falar. Entorna o cabelo para um poço de sombra. Espalha-o como se estivesse a nadar. Vê-se na água escura de onde vem, vê-se feliz, de corpo inteiro, em todas as posições, com todas as idades, menina mais uma vez, sorrindo na água-mãe. Esperava o vento que vinha.
Tinha tudo o que queria. Diziam-lhe para descer; ela descia. Esperava uma verdade que não vinha — as tempestades, a perdição, os navios — com o queixo sobre os joelhos, respeitando o ar da pele, sozinha como o dia. Não sabe o que tem.
O céu corre-lhe por cima da cabeça, parece tinta. Não quer saber o que se passa. Dança, quer dançar, dança toda a noite. As estrelas param e a manhã começa. Dança como se fosse proibido, dança como se fosse de verdade, até descer aquela alma dentro de mim, tirando-me o sono, tirando-me a certeza, tirando-me a paz.
O amor não fala a quem o escuta. A sereia não se deita e eu não durmo. A sereia não se deita à água e o rio está inquieto, remexe-se toda a noite, perdendo o fio das horas, enquanto ela dança, dança ao som do amanhecer.

Miguel Esteves Cardoso

Fonte: Lorelei / esculturas de João Cutileiro ; fotografias de Gérard Castello Lopes ; textos Miguel Esteves Cardoso. Porto : Porto Editora, [1989]
Fotos e restantes testos (1 a 9), para quem quiser ler: Sons da escrita 010, 011, 012.

Nota: Um excelente livro, duma beleza e estética singulares, editado na altura em capa dura e que simplesmente não consigo encontrar à venda em lado nenhum. Fica o apelo às editoras portuguesas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado pela referência ao "Sons da Escrita".
Faltou dizer que também se pode ouvir…
Um abraço
José-António Moreira