13.5.12

O que faz uma alma?

(Texto escrito em 1999. Foi um começo como cronista amador (só tinha 22 anos), muitas gralhas, demasiados pontos de exclamação, muita filosofia de ponta, uma escrita demasiado pretensiosa pela qual todos os jovens cronistas gostam de impressionar os outros. Engraçado é que ainda não me envergonho de ter escrito este tipo de lamechices, visto que nunca deixei de ser um cronista amador). 

A cidade acordou triste, remelenta e procurando o sol descobriu que este, envergonhado, escondera-se timidamente atrás dumas núvens cinzentas que se espraiavam pelo céu. Está na hora das pedras da calçada começarem a chorar e benevolamente juntarem as suas lágrimas às que as núvens ameaçam derramar sobre a Terra. Chorar é como chover - ninguém gosta mas é preciso! De vez em quando! Faz bem, porque não pode chover sempre... Nem chorar! Mas faz bem.
É sinal que a Alma está boa de saúde e está pronta a obrigar a puxar as pessoas pelo lenço. Nem que seja por um segundo! Milhares de lágrimas convertem-se num segundo de líquido que escorre pela cara misturando-se com as carnes ruborescidas que teimam em sorrir. Não se pode (nem tem importância) fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Uma alma sozinha é sempre mais chata do que uma alma acompanhada. Mais chato do que estar sozinho é estar triste.
Não conheço nenhuma pessoa que andando sozinha não ande sempre trombuda - com a alma na tromba! Andam sempre com a alma estampada na cara, como aquelas pessoas que vestem Nike. Uma alma é uma «coisa de marca». Pode ter sido inventada por alguém mas somos nós que a usamos. Somos sociáveis mas no minuto em que nos apanhamos a sós, temos uma chata duma alma para nos fazer companhia.
A alma é mais solitária que o homem - precisa dele! Para viver. Para ter sentido. Para respirar. Já ouviram falar em almas amigas? Eu só conheço almas gémeas. Do mesmo óvulo. É preciso ter um bocado de sorte para se encontrar a nossa alma gémea. Para além de serem almas, é horrível terem que ser gémeas. Como se uma só não bastasse.
Não há almas bonitas ou belas. A alma tem uma beleza (e não pode deixar de tê-la) que não se vê mas se sente. É uma brisa. Passa por nós e não nos deixa indiferentes.
Uma pessoa é uma casa que a alma aluga para viver para sempre! A tristeza e a solidão são o recibo de condomínio! Porque a solidão é sempre fria, a alma é um cobertor que aquece o corpo e o protege. Os sentimentos são aquecedores sentimentais, cobertores que conseguem cobrir inteiramente a zona cardíaca contra os choques solitários.
Uma alma trabalha muito, sem parar e só tira folga quando uma pessoa começa a amar. O coração entra em actividade e a alma finalmente pode tirar umas férias merecidas. Há como que um sistema rotativo de mudança de turnos: " Um coração quando amamos e uma alma quando estamos sozinhos!" A coração quer amar e a alma quer ser amada. Simples?
Porque será então que quando se ama, anda-se (repare neste verbo hediondo) com o coração nas mãos e anda-se de alma perdida? Um coração assustado esconde-se logo nas mãos (se possivel nas da pessoa amada) e um alma assustada o que mais quer é fugir para longe e perder-se (se possível, o mais longe da pessoa amada). A alma e o coração, o que são afinal? 
Uma alma é um autocarro vazio numa hora de ponta. Olha para fora, vê as pessoas; olha para dentro e só se vê a si mesma. A solidão é o condutor do autocarro. Deixa entrar toda a gente, mesmo sem bilhete. Uma alma é um autocarro para o passado, para o que perdemos, para o que não fizemos, para quem deixamos. Dá-nos a volta! Um coração é um avião, de tanto voar, só aprendeu a andar nas núvens, olha para o nosso amor cá em baixo e diz adeus com as asas.  A solidão é a pista de aterragem, quando o coração cai na "realidade". Uma alma olha para os outros e procura uma alma parecida consigo. Um coração já escolheu quem quer e só quer chamar a atenção dessa pessoa. Uma alma vive de fora para dentro. Um coração vive de dentro para fora. Um alma para trás. Um coração para a frente. Uma alma é sempre saudosista e um coração é sempre sebastianista. Nenhum vive para o presente. Essa é a função do cérebro, um órgão que não é para aqui chamado. Uma alma é conservadora; um coração é liberal. E por aí fora.
Um alma vê sempre tudo a preto e branco o coração vê tudo colorido. Para ele, o preto e o branco também são côres, mas mais feiotas e a evitar.
Uma alma quer tudo.
Se tivessemos só um minuto de vida, a alma ocuparía logo 59 segundos.  O outro segundo, a alma dá-o ao coração, mas se ele não o gastar logo, ela toma-o de volta para si, e outro e outro, o mais que puder, porque pensa que são todos iguais. Não é verdade. Num minuto de vida, há 60 segundos todos diferentes uns dos outros, todos com ciúmes uns dos outros. Enganem-se amigos. Um minuto não são 60 segundos iguais: há segundos de saudade, segundos de tédio, segundos de alegria e por aí fora.  Entre o 23º e o 24º segundos, há um ódio antigo que faz corar todos os outros segundos mais cortesãos. A alma é mais possessiva: quer todos os segundos duma vida só para ela e, com mal disfarçada pena, lá se compadece de dar o último dos segundos ao coração, que o agarra logo nas mãozinhas tremelicantes e com genuína alegria o gasta logo para pensar no seu amor perdido.
Uma alma guarda. Um coração gasta. Uma alma poupa, porque tem medo de perder. Um coração dá, porque não tem bolsos e se os tem estarão certamente rasgados e os segundos vão todos cair ao saco meio-vazio/ meio-cheio da alma.
Um coração que consiga amealhar muitos segundos, usa-os todos de maneira diferente. A alma gasta-os sempre na mesma coisa: em saudade. O coração gasta o tempo que tem a olhar para a frente; uma alma a olhar para trás. Por isso procura o coração e não o encontra. É que o coração é um orgão mesmo à frente!
Uma alma e um coração lutam pelo poder sobre as nossas vidas. Um coração pensa que sozinho chega lá e que basta um só segundo para ser feliz. A alma é mais recatada e pensa que precisa de muito tempo para pensar e avaliar a sua vida e precisa sempre de ajuda antes de tomar qualquer decisão. Se fossem indivíduos, uma alma é uma pessoa que está sempre à espera dum salário ou de um subsídio e só quer o que é justo. Sobretudo não quer perder o que acumulou toda a vida. Um coração, muito trabalhador ou muito preguiçoso, não se importa de trabalhar de graça. Uma alma acumula; o coração gasta tudo o que tem.
Uma alma é uma velhinha sentada numa cadeira de baloiço a fazer renda junto à lareira. Não se importa se está bom ou mau tempo. Um coração é um míudo de 10 anos a brincar na rua, uma fisga num bolso, caracóis e chiclas no outro, testa suada, joelho a sangrar com lenço amarrado e bicicleta ao lado de pernas para o ar. Uma alma tem medo de apanhar frio e se constipar. Um coração mesmo doente trabalha sempre.
Uma alma faz pela vida. Mas não a vive. Um coração limita-se a viver. Mesmo às vezes sem fazer nada por isso. Um alma envelhece muito mais rápido e em certos casos já nasceu velha. Um coração pensa que vai ser jovem para sempre.
E não é que vai mesmo?

2 comentários:

G Venceslau disse...

Nelson: é curioso o teu texto. ainda que escrito há uns anos (e apesar dos pontos de exclamação), há muita beleza actual no que disseste.

há coisas que já pensei e que disseste antes de mim, por palavras melhor trabalhadas que as minhas.

há coisas sobre as quais tenho uma opinião diferente da tua. há, no fundo, almas que nunca foram jovens e corações que nos batem...

obrigado pela partilha e por nos lembrar do essencial

Nelson Mendes disse...

Eu é que agradeço a atenção que tem dado a estes pequenos textos.
Sim, também concordo, há almas que nunca foram jovens mas as que nasceram jovens, com sorte, ficam jovens para sempre. É preciso sorte!

Cumprimentos.